Por Éderson Porto e Artur Hauser Schmitz
Entenda sobre a Recuperação judicial RS
O Estado do Rio Grande do Sul (RS) vive a maior tragédia de sua história. O Estado de Calamidade Pública fora decretado em todo o estado. Os números apresentados pela Defesa Civil gaúcha assustam[1]: mais de 460 municípios foram atingidos, dezenas de óbitos e de desaparecidos, 600.000 desalojados, além de mais de 2 milhões e trezentos mil pessoas atingidas pelas enchentes. O cenário é de guerra. E as consequências econômicas também.
Os dados disponíveis até o momento são preliminares, não demonstrando a real dimensão dos impactos socioeconômicos deste desastre. Todavia, aqueles que já foram publicados revelam um longo caminho a ser perseguido, visando a reconstrução do estado. Serão necessários, ao menos, cerca de 90 bilhões[2] de reais para executar os planos de reconstrução infraestrutural e habitacional do RS. Ressalta-se que estes dados são apenas preliminares, podendo ocorrer um aumento deste montante.
Observa-se que os impactos nas empresas gaúchas também são drásticos. Conforme projeções do Banco Santander, a indústria local pode ter um recuo, comparada ao ano de 2023, superior a 15%[3]. É um recuo impactante para a economia gaúcha, o que repercutirá no PIB estadual e nacional.
Como boa parte do estado enfrentando severos problemas de infraestrutura, é consequência lógica as severas dificuldades financeiras e operacionais a serem enfrentadas pelas empresas, de praticamente todos os setores e de todos os tamanhos. Para ilustrar o ponto, basta referir que o único aeroporto internacional do Estado, o Aeroporto Salgado Filho, ficará fechado até dezembro de 2024. Fica fácil perceber o impacto nas cadeias logísticas e de suprimentos.
O Rio Grande do Sul já observava uma elevação nos índices de requerimento de recuperação judicial, entre abril de 2023 e abril de 2024:
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- recuperação judicial RS (485%) e falências (380%)[4].
Se a tendência não era boa antes da decretação do estado de calamidade, sem querer ser alarmista, pode-se antever um aumento significativo nos pedidos de recuperação judicial, designado para as empresas viáveis (que seja possível a reorganização operacional e financeira da companhia), e de falência – centralizada na liquidação do patrimônio da empresa inviável para o posterior pagamento dos seus credores. Boa parte das dívidas contraídas por esta empresa são (ou serão) de caráter tributário, dado o custo da tributação no Brasil e a sua complexidade[5]. recuperação judicial RS
Tendo em vista este cenário, considera-se provável a ampliação do inadimplemento tributário perante todos os Entes Federados (União, Estados e Municípios). A partir disso, impõe-se o seguinte questionamento: é possível a exigência de Certidão Negativa Fiscal, mesmo em situação de extrema calamidade pública, das empresas afetadas é requisito essencial para a concessão do pedido de recuperação judicial RS?
A Lei de Recuperação Judicial e Falências (LREF), introduzida pela Lei n° 11.101/2005, impõe a exigência de quitação/parcelamento dos débitos tributários como condição para o requerimento da recuperação judicial. Como ao tempo da publicação da lei não havia um regime específico para regularizar os débitos tributários, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acabou flexibilizando a exigência:
DIREITO EMPRESARIAL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE QUE A EMPRESA RECUPERANDA COMPROVE SUA REGULARIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 57 DA LEI N. 11.101/2005 (LRF) E ART. 191-A DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (CTN). INOPERÂNCIA DOS MENCIONADOS DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA A DISCIPLINAR O PARCELAMENTO DA DÍVIDA FISCAL E PREVIDENCIÁRIA DE EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. O art. 47 serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do instituto, que é “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. 2. O art. 57 da Lei n. 11.101/2005 e o art. 191-A do CTN devem ser interpretados à luz das novas diretrizes traçadas pelo legislador para as dívidas tributárias, com vistas, notadamente, à previsão legal de parcelamento do crédito tributário em benefício da empresa em recuperação, que é causa de suspensão da exigibilidade do tributo, nos termos do art. 151, inciso VI, do CTN. 3. O parcelamento tributário é direito da empresa em recuperação judicial que conduz a situação de regularidade fiscal, de modo que eventual descumprimento do que dispõe o art. 57 da LRF só pode ser atribuído, ao menos imediatamente e por ora, à ausência de legislação específica que discipline o parcelamento em sede de recuperação judicial, não constituindo ônus do contribuinte, enquanto se fizer inerte o legislador, a apresentação de certidões de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a recuperação. 4. Recurso especial não provido. (REsp nº 1.187.404/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013).
A situação ganha novos contornos após a edição da Lei n. 14.112/2020, denominada a “Nova LREF”, a qual modernizou o processo recuperatório brasileiro, adequando-o aos preceitos estabelecidos pela doutrina e pela própria jurisprudência. A referida lei introduzi modificação importantes na Lei n.10.522/2002,incluindo as hipóteses de parcelamento (art. 10-B) e de transação (art. 10-C) dos débitos tributários devidos à Fazenda Nacional.
Ocorre que, mesmo após todas as mudanças legislativas já citadas, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve o entendimento de não exigir as já referidas certidões, uma vez que o art. 57 da LREF e o art. 191 do CTN deveriam ser interpretados em consonância com os princípios da preservação da empresa e da sua respectiva função social:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. ART. 57 DA LEI 11.101/05 E ART. 191-A DO CTN. EXIGÊNCIA INCOMPATÍVEL COM A FINALIDADE DO INSTITUTO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E FUNÇÃO SOCIAL. APLICAÇÃO DO POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA LEI 11.101/05. 1. Consoante a jurisprudência desta Corte, a apresentação de certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para concessão da recuperação judicial do devedor. Isso porque os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilégio do crédito tributário), não tem peso suficiente – sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação – para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete. 2. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp n. 1.597.261/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/4/2022, DJe de 18/4/2022.)
Compreende-se, também, que a regulamentação do parcelamento dos débitos tributários da União não acarretou a mudança, à época, do entendimento da Terceira Turma, sobretudo pela inadequação de tal exigência à luz do princípio da preservação da empresa:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. APRESENTAÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITO TRIBUTÁRIO. DESNECESSIDADE. INADEQUAÇÃO E DESNECESSIDADE DA REFERIDA EXIGÊNCIA. INCOMPATIBILIDADE COM O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 1. Sem amparo a alegação de que o tema em debate não poderia ser julgado monocraticamente, pois, a teor do consignado no art. 932 do CPC e na Súmula 568/STJ, o relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema, hipótese na qual se enquadram os autos. 2. Ademais, eventual vício ficaria superado, mediante a apreciação da matéria pelo órgão colegiado no âmbito do agravo interno. 3. A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que, mesmo após a edição de lei regulamentando o parcelamento dos créditos tributários de empresas em crise, não pode ser exigida a apresentação de certidões negativas de débito tributário como requisito para a concessão de recuperação judicial, visto que essa exigência se mostra medida desnecessária e inadequada, incompatível com o princípio da preservação da empresa. Inúmeros precedentes. Agravo interno improvido. (AgInt no REsp n. 1.977.485/RJ, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 2/10/2023, DJe de 4/10/2023)
Em decisões mais recentes, a 3ª Turma muda a orientação e passa a reconhecer que a Lei n° 14.112/2020 passou a oferecer um regime adequado para a recuperação judicial, de modo que a prova da regularidade fiscal não poderia mais ser relativizada:
RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITO FISCAL. APRESENTAÇÃO. NECESSIDADE. PRECLUSÃO. COISA JULGADA. AFASTAMENTO. INTIMAÇÃO. FAZENDAS PÚBLICAS. AUSÊNCIA. JULGAMENTO EXTRA PETITA. DECISÃO SURPRESA. NÃO OCORRÊNCIA. 1 (…). 2. Após a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020 e a implementação de um programa legal de parcelamento factível, é indispensável que as sociedades em recuperação judicial apresentem as certidões negativas de débito tributário (ou positivas com efeitos de negativas ) sob pena de ser indeferida a recuperação judicial, diante da violação do artigo 57 da LREF. Precedente. 3. A não apresentação das certidões não enseja o decreto de falência, pois não há previsão legal específica nesse sentido, implicando somente a suspensão da recuperação judicial. 4. Na hipótese, as Fazendas Públicas não foram intimadas da decisão que concedeu a recuperação judicial, de forma que não haveria como dela recorrerem. 5. Nos termos da jurisprudência desta Corte a nulidade decorrente de decisão que viola norma cogente pode ser declarada de ofício, sem que isso implique julgamento extra petita. 6. A exigência de regularidade fiscal está inserta no âmbito de desdobramento causal, possível e natural da controvérsia, obtido a partir de um juízo de ponderação do magistrado à luz do ordenamento jurídico vigente, o que não caracteriza decisão surpresa. 7. Recurso especial não provido. (REsp n. 2.082.781/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 28/11/2023, DJe de 6/12/2023.)
A questão que precisa ser enfrentada é a exigência de regularidade fiscal para empresas com sede no Rio Grande do Sul, estado atingido pela maior catástrofe ambiental da sua história.
Exigir a certidão de regularidade como condição de acesso à recuperação judicial significa ir de encontro aos fundamentos que norteiam o processo de soerguimento: (i) a preservação/continuação da empresa viável; e (ii) a função social exercida pelas companhias, como na geração de empregos e no próprio recolhimento de tributos.
Como se não bastasse, tais princípios tornam-se ainda mais marcantes quando da existência de estado de calamidade pública, vivido, neste momento, pelo RS. As empresas locais terão de utilizar todos os meios possíveis e legais para manter as suas operações e mitigar os seus danos (muitos deles irreparáveis), inclusive com pedidos de recuperação judicial. A exigência de certidão negativa de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial, ainda que só abrange tributos federais, obsta por completo a sua aplicabilidade prática, conforme demonstrado no voto do Min. Moura Ribeiro, relator do AgInt no REsp n.º 2070315/MT:
Dessa forma, no tocante ao mérito debatido nos presentes autos, concluiuse que a jurisprudência do STJ adotou o entendimento de que a apresentação de certidões negativas de débitos tributários não constitui requisito obrigatório para a concessão da recuperação judicial da empresa devedora, em virtude da incompatibilidade da exigência com a relevância da função social da empresa e o princípio que objetiva sua preservação. O que se espera, neste caso, não é uma nova interpretação por parte da Corte da Cidadania, e sim um retorno à sua visão de outrora, a qual priorizava a proteção da empresa e das positivas consequências práticas destes, a qual se demonstra ainda mais relevante em momentos de calamidade pública.
[1] https://www.defesacivil.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-21-5-18h
[2]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/05/10/reconstrucao-do-rs-vai-exigir-ao-menos-r-90-bi-estimam-especialistas.ghtml
[3]https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/chuvas-no-rs-podem-frear-pib-em-2024-com-impacto-na-industria-gaucha-avalia-santander/
[4]https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/giane-guerra/noticia/2024/04/recuperacao-judicial-de-empresas-bate-recorde-e-falencias-quintuplicam-no-rs-cluo44o2102a101248kmzrw3g.html
[5] OLIVEIRA, João Maria de Oliveira. Propostas de reforma tributária e seus impactos: Uma avaliação comparativa. Carta de Conjuntura IPEA, n. 60, Nota Conjuntura 1, 3º Trimestre 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjun.tura/index.php/2023/07/propostas-de-reforma-tributaria-eseus-impactos-uma-avaliacao-comparativa/. Acesso em: 22 mai. 2024.