Quais as alterações trazidas pela Lei n° 14.193/2021?
Ederson Garin Porto e Leandro Mello Schmitt
Entra em vigor a Lei n° 14.193/2021 que introduz no direito brasileiro a figura da Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas.
Não se pretende aqui, até por fugir ao propósito, abordar questões técnicas envolvendo a SAF, porém tecer alguns comentários sobre a importância da Lei para o futebol profissional. É senso comum que o futebol é o esporte mais praticado no Brasil e também em muitas outras partes no mundo. Em alguns países, com futebol de elite, a exemplo da Itália, Espanha, França e Alemanha, quase a esmagadora maioria dos clubes (e, como na Inglaterra, a totalidade) são juridicamente constituídos na forma de sociedades empresárias, especialmente pelo tipo SA (Sociedade Anônima), restando alguns poucos, como até agora ocorria no Brasil, cuja natureza jurídica era a de associação civil.
Em que pese muitos clubes brasileiros já operassem como sociedades (empresárias) de fato, antes da mencionada Lei, juridicamente, havia um sem-número de limitações, tanto no aspecto societário, como creditício e tributário. Clubes de futebol, considerando as diversas atividades econômicas exploradas (passes de jogadores, patrocínios, direitos de imagem e de arena, propriedade intelectual em muitos produtos que levam a logomarca do time, escolinhas…) são “empresas”, mas, no ordenamento jurídico brasileiro, não existia a possibilidade de se constituírem como sociedades empresárias, restando, praticamente, a (única) possibilidade de serem constituídos na forma de associações civis regidas pelo Código Civil que, nesta questão, nem de perto se compara à Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76 – sendo esta aplicada subsidiariamente à Lei nº 14.193/2021).
Quem acompanha este sensacional esporte bem sabe que na União Europeia os clubes de primeira divisão recebem dezenas de milhões de euros cada em investimentos (muitos destes milhões de investidores estrangeiros), na maioria fundos de investimento. Há inúmeros fundos norte-americanos e chineses que, no caso de alguns clubes, chegam a possuir mais de 2/3 do capital social de sociedades de futebol (salvo quando há a imposição de limite ao número de ações de titularidade de investidores, como ocorre na Bundesliga e na UEFA). E para que atraiam somas elevadas de investimentos (estrangeiros ou não), impensável uma organização jurídica diversa da sociedade anônima, isto porque é a que, além de ser conhecida em diversas ordens jurídicas há muito tempo, independentemente de seu objeto, sempre será empresária, como também, notadamente se pretender abrir o seu capital e negociar as suas ações no mercado, deverá estar alinhada às boas práticas de governança corporativa – tópico o qual a Lei, com acerto, ateve-se. Além disto, uma associação civil, em que pese possa explorar atividade econômica e sendo até aconselhável que adote boas práticas de governança, não tem nesta a sua atividade-fim, o que impede, por exemplo, o pagamento de dividendos e a distribuição de lucros entre os associados. Caso isto ocorra, será ilegal e passível de sanções. De outro lado, uma sociedade empresária tem como um de seus fins últimos a remuneração de seus acionistas. E, não sejamos ingênuos: fundos de investimento buscam sempre maximizar os ganhos dos seus integrantes.
E qual será, exatamente, a atividade-fim de uma Sociedade Anônima do Futebol? A Lei listou uma série de atividades que poderão integrar o objeto social da SAF, estando descritas no seu artigo 1º, § 2º, indo desde a formação de atleta profissional do futebol, até mesmo à exploração de ativos (inclusive direitos imobiliários) dos quais seja titular, sem falar nas sociedades Holding que agora poderão ter como acionistas/sócias, uma SAF. Não há a menor dúvida que, frente ao amplo leque de atividades-fim, a Sociedade Anônima do Futebol poderá ser um grande atrativo para investidores e também maximizar as fontes de capital para os clubes brasileiros, alguns dos quais, bem sabemos, até por não estarem submetidos aos princípios de governança e sem uma gestão profissional (o cartola nem sempre administra tendo em vista o interesse do clube como um todo), ficam à mercê de disputas políticas internas, interesses obscuros e, não raro, episódios de corrupção/má-gestão financeira acabam por levar o clube às raias da falência. E, por falar nisto, se agora clubes poderão ser constituídos como sociedades empresárias, também a eles poderão ser aplicadas as disposições da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas, ou LFR), o qual vai expressamente autorizado através do disposto no art. 13, inciso II, como também no art. 25, da Lei 14.193/2021. A aplicação da LFR às SAF pode ser interessante em alguns casos, sobretudo se considerado que, recentemente, foi a mesma modernizada em muitos pontos. Contudo, destaco o termo que expressa facultatividade – “poderão”, isto porque o legislador ao criar a SAF, sabedor das peculiaridades que gravitam em torno do financiamento dos clubes de futebol, dedicou um capítulo específico à insolvência coletiva. Não obstante a Lei 11.101/2005, retro mencionada, estabeleça um regime especial de insolvência coletiva do empresário e da sociedade empresária, muito embora a SAF sempre seja empresária, isto por se tratar de uma sociedade anônima, conforme o art. 2º, § 1º, da Lei nº 6.404/1976, existe a opção (conforme o art. 14, da Lei 14.193/2021), de uma SAF se submeter ao capítulo próprio da Lei que apresenta um “Regime Centralizado de Execuções”, com diversas particularidades em comparação àquele da LFR. Apenas causou surpresa a competência que o legislador conferiu ao Poder Judiciário para estabelecer a disciplina jurídica de tal Regime Centralizado, algo que normalmente é o próprio Legislativo quem costuma realizar, o que poderá gerar complexas discussões no tocante a questões de competência, porém esta parte merece ser abordada em um artigo específico. De qualquer modo, a opção por um ou outro regime de insolvência coletiva deverá ser estudado previamente e caso a caso, isto pelas implicações e singularidades de cada um deles.
Ainda, cabe registrar acerca da SAF, agora quanto à possibilidade de obtenção de financiamento, a opção de emissão de valores mobiliários para serem negociados no mercado, aqui, debêntures-fut, que, como sabemos, ressalvadas as devidas distinções com o regime da LSA e o da Lei em comento, é um importante meio de sociedades anônimas obterem financiamento e, com isto, viabilizarem as suas atividades. Não é impertinente ainda recordar que é impossível a uma associação civil emitir valores mobiliários, o que limita, sobremaneira, as suas fontes de financiamento e a sua própria existência em termos econômico-financeiros. Também não descurou o legislador quanto à importância social dos clubes de futebol, ora sociedades anônimas. Entrar em uma escolinha de futebol, para muitas crianças e jovens, especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos, pode ser a salvação do aliciamento pelo crime organizado e uma barreira natural para o ingresso destes no mundo das drogas, sem falar que para os mais talentosos, ainda poderá significar o acesso a uma carreira como jogador profissional do futebol. É o sonho da meninada. Só por aí o futebol já demonstra a sua força e enorme função social. Logo, é imperioso que, dentre as demais atividades-fim, a instituição de um programa de desenvolvimento educacional e social, o qual a Lei denominou de PDE, sejam levados a cabo pela SAF. E assim deverá ser. A Lei não faculta à SAF instituir um PDE, mas sim a obriga a tanto. O art. 28 da Lei estabelece que “A Sociedade Anônima do Futebol deverá instituir Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), para, em convênio com instituição pública de ensino, promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação”. Isto significa que o legislador andou muito bem e estava atento, quando estabeleceu este imperativo, à importância do futebol não somente para a formação profissional dos jovens, mas também moral. Ou seja, engana-se aquele que pensa que com a Lei em questão a SAF terá apenas vantagens, tais como a obtenção de financiamento em condições mais vantajosas, ou então um regime de insolvência, mas também ônus que lhe confiram o status de entidade que exerce função social, aqui como corresponsável pela educação dos jovens brasileiros, notadamente aqueles que, em virtude de assimetrias sócio-econômicas, nem sempre conseguem uma boa colocação no mercado profissional, mas, muito pelo contrário, e infelizmente, não raro acabam se perdendo para as drogas e para a bandidagem.
Não obstante a lei abra as oportunidades antes mencionadas, o prometido regime tributário específico acabou sendo vetado pelo Presidente da República. Destaco os vetos realizados em relação aos seguintes dispositivos:
§ 2º do art. 26 do Projeto de Lei
“§ 2º Os rendimentos decorrentes de aplicação de recursos em debênture-fut sujeitam-se à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às alíquotas de:
I – 0 (zero por cento), quando auferidos por pessoa natural residente no País; e
II – 15 (quinze por cento), quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no País, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior, incluindo pessoa natural ou jurídica ou fundo de investimento, exceto nos casos em que os rendimentos sejam pagos a beneficiário de regime fiscal privilegiado, nos termos dos arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, hipótese em que o imposto sobre a renda na fonte incidirá à alíquota de 25 (vinte e cinco por cento).”
Segundo justificativa do Ministério da Economia, o regime de tributação das debênture-fut caracterizaria “renúncia fiscal” e não viria acompanhada da estimativa de impacto financeiro. Isso porque o regime ordinário de tributação das debêntures segue o regime de tributação da renda fixa, sujeitando-se incidência do imposto pela chamada tabela regressiva (artigo 790 do RIR e art. 6° da Instrução Normativa RFB n° 1.585/2015). Logo, aplicar alíquota zero seria abrir mão de receita. Ocorre que a legislação tributária já prevê isenção para debêntures com foco na área de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação, considerados prioritários pela Administração Federal (art. 792 do Regulamento do Imposto de Renda e Lei nº 12.431, de 2011, art. 2º, caput , incisos I e II). Nestes casos, a alíquota do imposto de renda foi reduzida à zero quando o investimento é feito por pessoa física e 15 quando o investimento é realizado por pessoa jurídica. Logo, poder-se-ia adotar o mesmo regime e assim não se estaria incorrendo nas práticas antes referidas.
O veto presidencial atacou os artigos 31 e 32 que criava o Regime de Tributação Específica do Futebol. Vale reproduzir o texto:
“Art. 31. A Sociedade Anônima do Futebol regularmente constituída nos termos desta Lei fica sujeita ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).
§ 1º O regime referido no caput deste artigo implica o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições, a serem apurados seguindo o regime de caixa:
I – Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ);
II – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep);
III – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL);
IV – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e
V – contribuições previstas nos incisos I, II e III do caput e no § 6º do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.
§ 2º O recolhimento na forma deste artigo não exclui a incidência dos seguintes impostos ou contribuições, devidos na qualidade de contribuinte ou responsável, em relação aos quais será observada a legislação aplicável às demais pessoas jurídicas:
I – Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF);
II – Imposto de Renda relativo aos rendimentos ou ganhos líquidos auferidos em aplicações de renda fixa ou variável;
III – Imposto de Renda relativo aos ganhos de capital auferidos na alienação de bens do ativo imobilizado;
IV – contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS);
V – Imposto de Renda relativo aos pagamentos ou créditos efetuados pela pessoa jurídica a pessoas físicas; e
VI – demais contribuições instituídas pela União, inclusive as contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical, de que trata o art. 240 da Constituição Federal, e demais entidades de serviço social autônomo.
§ 3º O pagamento mensal unificado deverá ser feito até o vigésimo dia do mês subsequente àquele em que houver sido recebida a receita.
Art. 32. Nos 5 (cinco) primeiros anos-calendário da constituição da Sociedade Anônima do Futebol ficará ela sujeita ao pagamento mensal e unificado dos tributos referidos no § 1º do art. 31 desta Lei, à alíquota de 5 (cinco por cento) das receitas mensais recebidas.
§ 1º Para fins do disposto no caput deste artigo, considera-se receita mensal a totalidade das receitas recebidas pela Sociedade Anônima do Futebol, inclusive aquelas referentes a prêmios e programas de sócio-torcedor, excetuadas as relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
§ 2º A partir do início do sexto ano-calendário da constituição da Sociedade Anônima do Futebol, o TEF incidirá à alíquota de 4 (quatro por cento) da receita mensal recebida, compreendidos os tributos referidos no § 1º do art. 31 desta Lei, inclusive as receitas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas.
§ 3º O Ministério da Economia regulamentará a repartição da receita tributária de que trata este artigo, observadas as diretrizes de repartição de receitas tributárias estabelecidas pela Constituição Federal e pela legislação em vigor.”
A justificativa para o veto vai novamente embasada na renúncia de receita que encontraria vedação no rigoroso regime fiscal previsto na Constituição. Ocorre que o veto parte de um equívoco de premissa: não se pode renunciar aquilo que não se tem. Desde 1997, as associações possuem isenção de imposto de renda e contribuição social sobre lucro líquido (art. 15 da Lei n° 9.532/97). Equivale a dizer que a União já renunciou há mais de 24 anos! As poucas contribuições que incidem sequer são regularmente recolhidas, gerando o passivo tributário que os clubes reiteradamente acabam rolando com novos programas de parcelamento.
A discussão que cabe é se não seria melhor ter um regime de tributação (ainda que mais baixo) mas que efetivamente gerasse arrecadação e reduzisse o estoque de dívida ativa da União com os clubes. Infelizmente, este tema foi excluído da nova lei.
A nova legislação pode modernizar o futebol brasileiro e destravar a capacidade de geração de valor e riqueza que sabemos que o país é capaz de produzir. No entanto, tudo depende do correto arranjo de incentivos que poderá ou não impulsionar as condutas e propiciar o adequado ambiente virtuoso. Caso contrário, continuaremos sendo o país das promessas do futebol, promessas de um futuro melhor e nunca do presente!