Quem deve vencer? O Leão ou o Dragão: uma certeza já temos o contribuinte é duplamente penalizado

A imagem do Dragão está associada à inflação, já o Leão é o famoso mascote da Receita Federal. Numa disputa quem venceria? A provocação serve para debater a incidência da tributação sobre a inflação que voltou à assombrar os brasileiros. Pode o Fisco tributar o acréscimo originado pela inflação? Se o contribuinte não experimentou majoração real do seu patrimônio é possível sofrer a tributação da renda? Pretendo responder neste artigo.

A tributação da renda incide no acréscimo patrimonial ou variação patrimonial positiva. Equivale a dizer que a tributação da renda somente alcança a riqueza nova ou aquela fração do patrimônio majorada por algum evento de liquidez. Roque Carrazza, “é disponibilidade de riqueza nova, havida em dois momentos distintos. (…) é o acréscimo patrimonial experimentado pelo contribuinte, ao longo de determinado período de tempo[1].
 
Se é certo que a Constituição somente autoriza que o Estado Brasileiro se aproprie de uma riqueza nova, como deveria ser tratada a mera reposição da inflação? Quando algumas modalidades de investimento asseguram a reposição da inflação, o que está sendo oferecido para o poupador é somente garantir que ele não fique mais pobre num determinado lapso temporal. Ora, o fenômeno da inflação consiste, basicamente, em corroer o poder de compra de determinada moeda, de modo que o valor nominal mantido pelo investidor deve sempre ser descontado pela taxa de inflação do período para se aferir o verdadeiro acréscimo patrimonial. Logo, se num determinado ano hipotética verificarmos uma inflação de 10 e um rendimento total de 12 em determinado investimento, podemos afirmar que a indigitada aplicação rendeu míseros 2, haja vista que 10 foram corroídos pela inflação.
 
Estas singelas considerações são básicas e elementares, mas você sabia que o fisco se apropria do rendimento bruto de todo e qualquer investimento? Pela legislação vigente não há disciplina para o desconto da inflação, de modo que quanto maior for a inflação, maior será a arrecadação oficial de tributos.
 
A discussão sempre foi rechaçada pelo Poder Judiciário, entendendo que a variação positiva deve ser tributada independentemente de estar embutida inflação ou não. Nesse sentido, é emblemática a posição do Superior Tribunal de Justiça:
 
TRIBUTÁRIO E PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS ARTS. 932 E 1.022 DO CPC/2015. PARCELA CORRESPONDENTE À INFLAÇÃO NOS RENDIMENTOS DE APLICAÇÕES FINANCEIRAS. INCIDÊNCIA DO IRPJ E DA CSLL. AGRAVO INTERNO DA CONTRIBUINTE NÃO PROVIDO. (…)
3. O entendimento jurisprudencial de ambas as Turmas que compõem a Seção de Direito Público do STJ firmou-se no sentido de ser legítima a incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica-IRPJ e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido-CSSL sobre o total dos rendimentos e ganhos líquidos de operações financeiras, ainda que se trate de variações patrimoniais decorrentes de diferença de correção monetária. Isso porque se trata de disponibilidade econômica decorrente do capital, acrescentando valor nominal da moeda. Precedentes: AgInt no REsp 1928590/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/11/2021, DJe 08/11/2021; AgInt no REsp 1897280/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/10/2021, DJe 21/10/2021; e AgInt no REsp 1902562/RS, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 22/09/2021. 4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1936706/RS, Rel. Ministro MANOEL ERHARDT (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF5), PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/12/2021, DJe 16/12/2021)
 
A posição acima reproduzida é recente e retrata o entendimento da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça. No entanto, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se de forma diversa em dois recentes precedentes firmados na sistemática da Repercussão Geral. Refiro-me ao Tema 808 e 962 do STF.
 
No julgamento do Tema 808, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese: “Não incide imposto de renda sobre os juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função”. Vale reproduzir a ementa do leading case:
 
Recurso extraordinário. Repercussão Geral. Direito Tributário. Imposto de renda. Juros moratórios devidos em razão do atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função. Caráter indenizatório. Danos emergentes. Não incidência. 1. A materialidade do imposto de renda está relacionada com a existência de acréscimo patrimonial. Precedentes. 2. A palavra indenização abrange os valores relativos a danos emergentes e os concernentes a lucros cessantes. Os primeiros, correspondendo ao que efetivamente se perdeu, não incrementam o patrimônio de quem os recebe e, assim, não se amoldam ao conteúdo mínimo da materialidade do imposto de renda prevista no art. 153, III, da Constituição Federal. Os segundos, desde que caracterizado o acréscimo patrimonial, podem, em tese, ser tributados pelo imposto de renda. 3. Os juros de mora devidos em razão do atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas (danos emergentes). Esse atraso faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos, que atraem juros, multas e outros passivos ou outras despesas ou mesmo preços mais elevados, para atender a suas necessidades básicas e às de sua família. 4. Fixa-se a seguinte tese para o Tema nº 808 da Repercussão Geral: “Não incide imposto de renda sobre os juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função”. 5. Recurso extraordinário não provido.(RE 855091, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-064 DIVULG 07-04-2021 PUBLIC 08-04-2021)
 
A Corte assentou que a tributação não deve incidir sobre os encargos da mora que, por definição, visão compensar o credor que foi privado da quantia que lhe era devida no tempo correto. Logo, a indenização pelo atraso não deve ser tributada.
 
Na mesma toada, o Supremo Tribunal Federal afastou a incidência da tributação do lucro (IRPJ e CSLL) sobre a taxa SELIC que tem justamente a função de corrigir a moeda e recompor perdas, não caracterizando acréscimo patrimonial:
 
Recurso extraordinário. Repercussão geral. Direito Tributário. IRPJ e CSLL. Incidência sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário. Inconstitucionalidade. 1. A materialidade do imposto de renda e a da CSLL estão relacionadas com a existência de acréscimo patrimonial. Precedentes. 2. A palavra indenização abrange os valores relativos a danos emergentes e os concernentes a lucros cessantes. Os primeiros, que correspondem ao que efetivamente se perdeu, não incrementam o patrimônio de quem os recebe e, assim, não se amoldam ao conteúdo mínimo da materialidade do imposto de renda prevista no art. 153, III, da Constituição Federal. Os segundos, desde que caracterizado o acréscimo patrimonial, podem, em tese, ser tributados pelo imposto de renda. 3. Os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário visam, precipuamente, a recompor efetivas perdas (danos emergentes). A demora na restituição do indébito tributário faz com que o credor busque meios alternativos ou mesmo heterodoxos para atender a suas necessidades, os quais atraem juros, multas, outros passivos, outras despesas ou mesmo preços mais elevados. 4. Foi fixada a seguinte tese para o Tema nº 962 de repercussão geral: “É inconstitucional a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os valores atinentes à taxa Selic recebidos em razão de repetição de indébito tributário”. 5. Recurso extraordinário não provido. (RE 1063187, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-247 DIVULG 15-12-2021 PUBLIC 16-12-2021)
 
Os precedentes acima reproduzidos sinalizam que a Suprema Corte não reconhece como tributável os acréscimos nominais que visam apenas recompor, tornar indene. Logo, parece lógico afirmar que a tributação não poderia incidir sobre a parcela majorada por influência da inflação, sob pena de se tributar o empobrecimento. Eis uma tese que merece ser submetida ao Poder Judiciário frente aos novos precedentes firmados pela Suprema Corte.
[1] CARRAZZA, Roque Antonio. A natureza meramente interpretative do art. 129 da Lei 11.196/05, o imposto de renda, a contribuição previdenciária e as sociedades profissionais. In: RDDT 154, jul/08, p. 109.
 
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