POR QUE A FORD DECIDIU DEIXAR O BRASIL?

Uma perspectiva tributária da decisão da FORD

Em 11 de janeiro de 2021, a montadora FORD anunciou, por meio de comunicado à imprensa, a decisão de encerrar a produção de veículos no Brasil. Dentre as justificativas apresentadas pela fabricante de veículos, foram identificadas a “continuidade do ambiente econômico desfavorável” e a “pressão adicional causada pela pandemia”.

Tão logo comunicada a decisão, iniciaram narrativas para explicar os motivos e dada a polaridade dos debates públicos, prontamente surgiram aqueles que saíram em defesa da empresa e aqueles que passaram a criticar a decisão. Por óbvio, o motivo desse blog não é discutir questões políticas, nem analisar os erros e acertos da gestão da montadora no solo brasileiro. Pretendo elencar razões de ordem jurídica e sobretudo aqueles de matiz tributária que ajudam a compreender a decisão da empresa e que se fossem levados a sério, poderiam ajudar a evitar uma debandada geral ou como dizem alguns, uma desindustrialização do país.

  1. Montadoras pagam pouco tributos no Brasil?

As montadoras são altamente beneficiadas no Brasil. Essa é uma afirmação equivocada feita por alguns comentaristas desinformados. O setor Automotivo é, segundo dados da Receita Federal, um dos principais responsáveis pela arrecadação total de tributos no Brasil. Veja o quadro elaborado pela Receita Federal (disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2020/dezembro2020/analise-mensal-dez-2020.pdf):

Examinando a tabela de arrecadação por setor de atividade, percebe-se que o setor automotivo responde por mais de R$ 29 bilhões de arrecadação, ficando atrás apenas do setor financeiro, comércio varejista, energia elétrica e combustíveis. Logo, não é correto afirmar que o setor automotivo arrecada pouco, quando os números demonstram que o setor é um dos que mais arrecada. Como é um setor com poucos competidores, pode-se afirmar que as poucas montadoras sediadas no Brasil contribuem decisivamente no sustento do Estado brasileiro. A nossa tributação está bem calibrada? É correto focar a tributação de forma pesada em alguns setores específicos? Há um incentivo para novos competidores com uma tributação pesada em calcada nestes setores? As perguntas são retóricas porque os números deixam evidente a razão da baixa concorrência nestes setores que criam verdadeiros oligopólios.

2. O setor automotivo recebe muito incentivo fiscal?

Afirma-se que o setor recebe vultosos incentivos fiscais. Trata-se de outra afirmação equivocada. Analisando os números oficiais da Receita Federal percebe-se que o volume de incentivos concedidos ao setor industrial (global) não é o mais expressivo tendo em conta o volume concedido a outros setores. Veja o quadro da Receita Federal (disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/renuncia-fiscal/demonstrativos-dos-gastos-tributarios/arquivos-e-imagens/dgt-bases-efetivas-2017-serie-2015-a-2020-base-conceitual-e-gerencial.pdf)

O gráfico acima revela que o percentual de incentivos concedidos à indústria (geral) responde por 11,10% do total de incentivos concedidos pelo Governo Federal. Logo, não é correto afirmar que o setor industrial é fortemente beneficiado. No entanto, decompondo o percentual de 11,10% concedido à indústria, observa-se o quanto é destinado ao setor automotivo:

Os números oficiais da Receita Federal indicam que o setor automotivo responde por 19% do total de incentivos concedidos a todo o setor industrial que, como já dito, responde por 11,10% do total. Na tabela abaixo, fica expresso o montante de benefícios concedidos:

Os dados apresentados pela Receita Federal demonstram que o montante concedido ao setor automotivo não é expressivo quando comparado com outros incentivos concedidos a outros setores. Portanto, para se estabelecer um debate sério é preciso olhar atentamente aos números e questionar o volume do “gasto tributário” com o valor de tributos arrecadados pelo setor. Percebe-se que os incentivos são compatíveis com a arrecadação tributária gerada. Em outras palavras, o setor automotivo arrecada mais de R$ 29 bilhões e para isso é beneficiado em R$ 4 bilhões. Novamente, a pergunta que se faz é se o setor industrial deveria ser tão penalizado com a alta carga tributária? O que acontece na prática o Governo brasileiro dá um tapa (tapa não, um murro) e depois assopra. Olhando para estes números é possível entender o que se tem chamado de fenômeno da desindustrialização do país. Se é tão caro produzir no país, os agentes econômicos como seres racionais irão alocar seus recursos onde for mais eficiente do ponto de vista econômico. Isso explica porque um país com graves problemas, como a Argentina, conseguiu receber o investimento da Ford e o Brasil perdeu.

3. Benefícios fiscais não são bons incentivos?

Muito se criticou e questionou os incentivos fiscais, sinalizando que por mais incentivos que o Brasil tenha concedido, não conseguimos reter os investimentos e muitas indústrias deixaram o país nos últimos anos. Como já foi possível demonstrar que o volume de incentivos concedidos não é exagerado quando cotejado com outros setores e programas de gastos tributários. No entanto, creio que o debate está mal colocado. Às vezes o problema não está na resposta e sim na pergunta formulada. Perguntar se os incentivos fiscais são eficientes para promoção do desenvolvimento econômico pode não ser a pergunta adequada quando se desconsidera a complexidade da tributação no Brasil. Arrolar os incentivos concedidos e afirmar que malgrado o volume de desoneração não se verificou o desenvolvimento industrial esperado é equivocado porque não se examina o peso da tributação sobre o setor e muito especialmente a complexidade para apuração. O custo de conformidade tributária no Brasil é colossal. As indústrias, por vezes, possuem tantos profissionais contratados para a apuração de tributos quando aqueles envolvidos na produção. Considerando o alto custo de profissionais de contabilidade, advogados e analistas, empresas de auditoria, etc e cotejando com o volume alocado em engenheiros e empregados encarregados da produção, é possível verificar que em algumas indústrias os valores quase se equivalem. É surreal perceber que um empresa gasta o mesmo ou mais em apuração de tributos que o custo dedicado à produção. Em suma, o incentivo fiscal é um paliativo. O paciente está acometido de uma doença grave e o tratamento médico é uma alta dose de analgésico. O analgésico vai aliviar a dor, mas não tem a capacidade de curar a doença.

4. Dívida bilionária de ICMS em São Paulo é a razão da saída da Ford?

Noticiou-se na imprensa que a montadora possuía uma dívida de R$ 2,7 bilhões de ICMS apenas no Estado de São Paulo. A dívida teria origem na discussão no valor de valores de incentivos concedidos pelo estado da Bahia em relação aos veículos comercializados em São Paulo que adota o regime de substituição tributária (ICMS-ST). O meu propósito com este artigo não é avaliar a correção ou equívoco da autuação do Estado de São Paulo. O ponto em abordar a questão é questionar a racionalidade da discussão. Faz sentido que o país possua 27 legislações de ICMS distintas? O problema não é a diversidade de alíquotas, haja vista que outros países como os EUA adotam tributação sobre vendas com alíquotas diferenciadas. O verdadeiro absurdo é que o país adote um regime de tributação interestadual e esta tributação entre estados não seja uniforme. Enquanto nos EUA a tributação sobre as vendas ocorre apenas na ponta, na venda ao consumidor, o Brasil, de seu turno, tributa cada transação entre os Estados e não raras vezes as legislações são contraditórias. Eu colocaria a questão nos seguintes termos: se o Estado de São Paulo consentiu que a divergência sobre a tributação chegasse ao patamar de R$ 2,7 bilhões, o único responsável pela crise seria a Administração Tributária que não foi capaz de evitar que a divergência interpretativa chegasse a tal patamar. Há notícias que o Governo de São Paulo montou uma força tarefa para tentar reverter a decisão da montadora. Não deveria ter feito antes? Ninguém percebeu que havia uma discussão vultosa sobre a aplicação da legislação tributária que não traria benefício a ninguém? Uma administração séria e ciosa da sua responsabilidade teria identificado o problema na origem e planejado uma solução para não permitir que se chegasse à astronômica cifra de R$ 2,7 bilhões. Veja-se não se está falando de uma empresa sonegadora que ardilosamente se evadiu da tributação! A discussão gira em torno da correta apuração do ICMS. Se a parcela não tributada equivale a R$ 2,7 bilhões, imagine o volume de recursos recolhidos ao Estado de São Paulo por esta contribuinte. Permitir que a situação ganhasse tamanho vulto explica e muito as razões da Ford deixar o país e muitas outras empresas sequer cogitarem investir aqui.

Em conclusão, gostaria que esta reflexão permitisse uma correção de rumos. É insano continuar adotando a mesma tributação e esperar resultados diferentes em relação ao estímulo ao desenvolvimento. Se é verdade que o contencioso tributário alcança a expressiva parcela de 75% do PIB nacional, uma certeza nós temos: não é possível continuar fomentando a complexidade e com isso a litigiosidade. É preciso simplificar a tributação e ampliar a base de contribuintes para que a carga seja suportada por mais contribuintes em patamares mais toleráveis, sob pena de continuarmos adotando o mesmo receituário que até hoje não se revelou eficiente.

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