SOLUÇÃO PARA A INADIMPLÊNCIA RECÍPROCA DO ESTADO E DO CONTRIBUINTE: A CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO PROCESSUAL
Éderson Garin Porto
Visiting Scholar UC Berkeley School of Law. Doutor e Mestre pela UFRGS. Professor do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/RS. Professor colaborador da ESA (OAB/RS). Advogado.
Reza a Constituição que todos são iguais perante a lei (art. 5°, caput), sendo vedado tratamento discriminatório entre os contribuintes (art. 150, inciso II). A prescrição normativa do texto constitucional distancia-se da prática quando os operadores defrontam-se com a cobrança de créditos titulados pelo fisco e pelo contribuinte. Quando o fisco é credor, aplica-se o rito privilegiado previsto na Lei n° 6.830/80 e normas esparsas que concedem inúmeras vantagens à Fazenda Pública. Quando o cidadão figura na condição de credor deve se sujeitar ao rito desfavorecido previsto no Código de Processo Civil que submete seu crédito ao regime de precatórios (art. 100 da Constituição).
É evidente que o instituto do precatório não foi criado para prejudicar o cidadão, senão para compatibilizar os preceitos de impenhorabilidade e inalienabilidade aplicáveis aos bens públicos. Assim, a Constituição estabeleceu um regime de controle para a satisfação dos créditos constituídos contra o Erário que visam única e exclusivamente permitir a gestão da liquidação das obrigações. Não se pode admitir que o regime de precatório crie situações discriminatórias, nem mesmo se institucionalize o “calote” por parte dos entes públicos. Sabendo que a Administração Pública deve observar o preceito da moralidade (art. 37 da Constituição) não se pode admitir que as dívidas assumidas pelo Estado não sejam quitadas com o “amparo” do regime de precatórios.
Avolumam-se nos foros execuções contra a fazenda pública que aguardam em compasso de espera. A título de exemplo, segundo dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o estoque de precatórios gaúcho corresponde a R$ 14,68 bilhões, considerando Administração Direta e Indireta. Atualmente, o Estado deposita mensalmente, em contas específicas do Tribunal, o equivalente a 1,5% da Receita Corrente Líquida, o que resulta em parcelas entre R$ 46 e 50 milhões. O percentual é ínfimo e não permite reduzir o passivo que cresce anualmente. Uma alternativa viável e, ao mesmo tempo, polêmica seria a utilização do instituto da compensação que no âmbito do Rio Grande do Sul veio a ser regulamentado pela Lei n° 15.038/2017. A controvérsia é conhecida e não se pretende incursionar neste antigo debate.
Dentro do cenário caótico das finanças públicas no qual estão inseridos praticamente todos os entes da federação, não se vislumbra uma alternativa viável no curto prazo para resolver a odiosa discriminação na satisfação dos créditos. De um lado, o crédito tributário goza de rito especial, possibilidade de protesto de CDA, penhora on-line e mais recentemente averbação pré-executória (art. 22-B, § 3°, inciso II da Lei n° 10.522/02 com redação dada pela Lei n° 13.606/2018). De outro lado, o crédito do particular contra a Fazenda Pública deve se conformar com a espera imposta pelo regime previsto no artigo 100 da Constituição.
Na tentativa de amenizar a dramática situação, propõe-se uma alternativa que parece plenamente viável a partir do novo Código de Processo Civil. Defendemos na terceira edição do Manual da Execução Fiscal (PORTO, Éderson Garin. Manual da Execução fiscal. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2019) que o Código de Processo Civil vigente exalta a autonomia da vontade e presta homenagem aos meios adequados de resolução do litígio (art. 1°, §§ 2° e 3°). Conferiu-se importantes espaços de disposição às partes, assegurando-lhes a possibilidade de delimitar a controvérsia (arts. 141, 490 e 492, CPC), a possibilidade de renunciar (art. 487, III, c), desistir (art. 485, VIII, CPC) e abdicar de um modo, inclusive em fase recursal (art. 998, parágrafo único), sem esquecer da importância de certos atos omissivos (art. 65, art. 337, § 6.º, e art. 1.000, CPC).
Naquilo que interessa ao problema em questão, merece destaque o artigo 190 do Código de Processo Civil que prescreve, in verbis:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
É o que a doutrina chama de “Negócios Processuais”[1] ou também “customização compartilhada”[2]. O Código admite inclusive que as partes e o magistrado, de comum acordo, estabeleçam um calendário para a prática dos atos processuais (art. 191, CPC).
Se a legislação processual autoriza expressamente que as partes celebrem “negócios processuais”, visando reduzir ou extinguir litígios, a pergunta que se coloca é se poderia aplicar às execuções movidas contra a Fazenda Pública ou às execuções fiscais. Não obstante, o artigo 174 do Código de Processo Civil exorte os entes da federação a criar câmaras de mediação e conciliação para tratar de temas de direito público, a consensualidade em matéria tributária é tida no Brasil como verdadeiro “tabu”. Sobre a possibilidade de celebração de negócios, pode-se referir o Enunciado n° 256 do Fórum Permanente de Processualistas que preconiza que “A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual”. Como refere Leonardo Carneiro da Cunha, “se o advogado público pode convencionar a suspensão do processo, escolher o procedimento a ser adotado, o meio de impugnação a ser utilizado, é porque pode celebrar negócio processual”[3]. A controvérsia parece ter sido definitivamente dirimida no âmbito da execução fiscal a partir da edição da Portaria PGFN n° 360 de 2018 que passou a autorizar as Procuradorias a realizarem negócios processuais. Segundo dispõe o artigo 2° da Portaria n° 360, ficou autorizado a celebração de negócio jurídico processual (NJP) e fixação de calendário processual sobre os seguintes temas:
I – cumprimento de decisões judiciais;
II – confecção ou conferência de cálculos;
III – recursos, inclusive a sua desistência; e
IV – forma de inclusão do crédito fiscal e FGTS em quadro geral de credores, quando for o caso.
No entanto, a Portaria veda expressamente a celebração de negócio jurídico processual nos seguintes casos:
I – cujo cumprimento dependa de outro órgão, sem que se demonstre a sua anuência prévia, expressa e inequívoca;
II – que preveja penalidade pecuniária;
III – que envolva qualquer disposição de direito material por parte da União, ressalvadas as hipóteses previstas Portaria PGFN Nº 502, de 12 maio de 2016, e na Portaria PGFN Nº 985, de 18 de outubro de 2016;
IV – que extrapole os limites dos arts. 190 e 191 do Código de Processo Civil; ou
V – que gere custos adicionais à União, exceto se aprovado prévia e expressamente pela Procuradoria-Geral Adjunta competente.
Dentro desta perspectiva, parece plenamente viável estabelecer acordos que prevejam o pagamento mútuo dos créditos dentro do calendário de quitação dos precatórios estabelecido pelo respectivo ente. À primeira vista a ideia parece se assemelhar com o instituto da compensação, porém a tese ora sustentada não consiste na extinção recíproca dos créditos tal como previsto no artigo 156, II do Código Tributário Nacional. Como dito, a compensação encerra uma polêmica sobre sua viabilidade e inclusive sobre a eventual desobediência à ordem cronológica dos precatórios insculpida na Constituição.
A ideia proposta é diferente. Não se sugere a extinção das execuções com a compensação do crédito tributário com precatório. Em verdade, propõe-se que o titular do precatório celebre um acordo com a Fazenda Pública, estabelecendo que a cobrança da sua dívida ficará suspensa com a apresentação do crédito e o fluxo de quitação do crédito tributário observará rigorosamente a ordem cronológica de apresentação do respectivo precatório e os regimes e condições que o respectivo ente da federação possa imprimir para quitação dos precatórios. O negócio processual harmoniza o direito da Fazenda Pública com o direito do cidadão, eliminando a discriminação atualmente vigente. Num Estado Democrático de Direito, submetido ao império da lei, não se pode concordar com a naturalização do inadimplemento ou institucionalização do calote. Lança-se a presente tese, esperando que os operadores do direito consigam atingir melhores resultados na resolução dos conflitos que aqueles atualmente experimentados.
[1] CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (coord.). Negócios Processuais. Salvador: Juspodivm, 2014. [2] ABREU, Rafael Sirangelo de. Customização processual compartilhada : o sistema de adaptabilidade do novo CPC . In: Revista de processo, v. 41, n. 257, p. 51-76, jul. 2016. [3] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 663.