No momento em que escrevo este texto, com um aperto grande no peito, vejo necessidade de dar a dimensão da catástrofe que assola do Estado do Rio Grande do Sul:
Mortos: 154
Desaparecidos: 98
Feridos: 806
Pessoas em abrigos: 78.165
Desalojados: 540.192
Pessoas afetadas: 2.281.830
Pessoas resgatadas: 82.666
Animais resgatados: 12.108
Municípios afetados: 461
Fonte: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/16/relatorio-defesa-civil-vitimas-enchentes-rs-1605.ghtml
Estes números infelizmente serão ampliados quando a água baixar e pudermos computador com exatidão os efeitos da tragédia.
Registro estes números imprecisos para prestar solidariedade ao sofrimento das vítimas e demonstrar que as medidas ordinárias não se revelam suficientes.
Se é inexorável o enfrentamento da crise climática e humanitária com medidas extraordinárias, impõe-se reconhecer que o socorre depende de recursos e, neste ponto, a solução do problema é uma moeda de duas faces: o socorro depende de recursos e os recursos são obtidos por meio de arrecadação tributária.
É aqui que a questão se coloca num complexo impasse. Se os recursos públicos provêm da tributação da sociedade, mas parcela significativa dos contribuintes está imersos nas águas da catástrofe, como assegurar os recursos necessários sem perder de vista que o orçamento público já estava comprometido e agora precisará dar conta de emergências de extrema gravidade.
Escrevo algumas contribuições que serão o ponto de partida do debate e sinceramente espero que sejam avaliadas pelos órgãos constitucionalmente apoderados para assim deliberar.
MEDIDAS DE NATUREZA FISCAL
A primeira face da moeda é a feição fiscal do problema. A ajuda federal reclamada provirá do orçamento da União Federal que foi elaborado em 2023 e previa uma meta de déficit fiscal zero. Antes mesmo da catástrofe, especialistas já anunciavam que não seria possível entregar o déficit zero prometido na Lei Complementar n° 200/2023, apelidada de novo arcabouço fiscal, agora se pode afirmar com toda a certeza que a meta fiscal não será atingida se a ajuda efetivamente chegar.
Diante do quadro grave e delicado, não consigo imaginar nenhuma solução além de duas abordagens possíveis: (i) ou se revisa o orçamento e se promovem deliberações sobre prioridades ou (ii) se cria uma exceção ao regramento fiscal vigente com a elaboração de algo semelhante ao que foi feito por ocasião do enfrentamento da pandemia com o chamado orçamento de guerra (Proposta de Emenda Constitucional n° 10/2020) vertida na Emenda Constitucional n° 106/2020.
Sobre a primeira abordagem, reconheço o quão delicado e difícil do ponto de vista político promover remanejo dentro da alocação orçamentária. Inúmeros compromissos foram assumidos e como tal precisam ser honrados.
No entanto, indago se não seria possível, dentro de um cenário de excepcionalidade, revisar a provisão para o fundo eleitoral. O Congresso reservou R$ 4,9 bilhões para o financiamento público de campanha para as eleições municipais deste ano. Não seria possível abrir uma exceção e realizarmos eleições com um volume menor de recursos? Não seria solidário criarmos um pleito eleitoral com sobriedade e moderação de recursos em tempos que as pessoas consomem informação por meio digital? Se a medida proposta tem tramitação improvável no Congresso Nacional, questiono: não se poderia celebrar um pacto, ao menos no âmbito do Rio Grande do Sul, para que os postulantes acordassem direcionar tais recursos para enfrentamento da calamidade pública? Eu penso que nenhum cidadão e nenhuma cidadã que se habilitar ao pleito eleitoral se furtará em acolher esta proposta.
O governado do estado do Rio Grande do Sul disse que a reconstrução dos estragos deixados pela catástrofe demandará uma espécie de “Plano Marshall”. A Autoridade fazia alusão ao programa idealizado pelo General do Exército norteamericano George Catlett Marshall, que buscava disponibilizar dinheiro dos cofres americanos aos países devastados pela Segunda Guerra Mundial. A verdade é que a arrecadação tributária brasileira contempla o equivalente a um plano Marshall por ano. Infelizmente nossa alocação de recursos é muito ineficiente, pois apesar da expressão do montante somos incapazes de promover a reconstrução semelhante aquela realizada no pós guerra. Tais problemas alocativos são antigos e talvez demasiadamente amplos para abordagem aqui pretendida. No entanto, é possível identificar que o volume de recursos públicos que foram capturados pelas emendas parlamentares possam ser o caminho para reordenar o senso de urgência e utilidade. Note-se a evolução e a voracidade com que o orçamento público foi apropriado pelo parlamento, informado no Portal da Transparência:
A imagem fala por si. Em 2014, havia sido empenhado aproximadamente R$ 6 bilhões (linha amarela) e efetivamente pago zero (linha verde). Pequeno parênteses: não se pode negar que o contingenciamento das verbas das emendas parlamentares contribuíram para o impeachment deflagrado naquele período. O que se observa é um crescimento vertiginoso do comprometimento do orçamento federal com alocações de parlamentares que atingiu o montante de R$ 37 bilhões em 2023 e será ainda maior em 2024. Sem adentrar no mérito das destinações concebidas pelos parlamentares, o momento enseja a oportunidade para a retomada da gestão do orçamento pelo Poder Executivo que é quem precisará enfrentar e socorrer os atingidos.
Apenas na análise destas duas rubricas, estar-se-ia recuperando mais de R$ 50 bilhões do orçamento para direcionar emergencialmente para a reconstrução do Estado do Rio Grande do Sul.
Um último aspecto de natureza fiscal, reside no olhar para o federalismo fiscal que nas palavras do Min. Ricardo Lewandowski é chamado de federalismo cooperativo. Durante décadas, os estados mais desenvolvidos contribuíram com os estados menos desenvolvidos por meio do Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios, o que pode ser observado na imagem abaixo do Portal da Transparência:
Não é desarrazoado propor uma distribuição de recursos de forma excepcional que contemplasse melhor o Estado do Rio Grande do Sul. Note-se que não se trata de pedir recurso não previsto. Propõe-se um retorno de recursos mais proporcionais aqueles que são enviados pelo Estado aos cofres da União Federal. Se o Estado sempre enviou um volume maior de recursos para auxiliar os demais estados, chegou a hora dos demais estados contribuírem com a redistribuição em razão da situação extraordinária.
MEDIDAS DE NATUREZA TRIBUTÁRIA
No espectro das medidas de natureza tributária, algumas medidas já foram adotas e decidi compilar as informações para facilitar o acesso do interessado pela ação. Vou dividi-las por esfera governamental.
BRASIL
A União já divulgou algumas medidas de auxílio que estão assim estruturadas.
PORTARIA PGFN/MF Nº 737, DE 6 DE MAIO DE 2024
Dispõe sobre medidas relacionadas aos atos de cobrança da dívida ativa da União, incluindo suspensão, prorrogação e diferimento, em decorrência do estado de calamidade pública em municípios do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecido pelo Decreto nº 57.596, de 1º de maio de 2024, e ratificado pelos Decretos nº 57.600, de 4 de maio de 2024, e nº 56.603, de 5 de maio de 2024, todos do Estado do Rio Grande do Sul.
PORTARIA CGSN Nº 45, DE 6 DE MAIO DE 2024
Dispõe sobre prorrogação das datas de vencimento dos tributos apurados no Simples Nacional para contribuintes com matriz nos municípios do Estado do Rio Grande do Sul – RS incluídos em Decreto de calamidade pública estadual.
PORTARIA RFB Nº 415, DE 6 DE MAIO DE 2024
Prorroga prazos para pagamento de tributos federais, inclusive parcelamentos, e para cumprimento de obrigações acessórias, e suspende prazos para a prática de atos processuais no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, para contribuintes domiciliados nos municípios enumerados no Anexo Único desta Portaria, localizados no Estado do Rio Grande do Sul.
PORTARIA MTE Nº 729, DE 15 DE MAIO DE 2024
Autoriza a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS para os empregadores situados em municípios do Estado do Rio Grande do Sul alcançados por estado de calamidade pública reconhecido pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional.
RIO GRANDE DO SUL
O Estado do Rio Grande do Sul já adotou as seguintes medidas em favor dos contribuintes que estão aqui compiladas. Em razão das cheias e da necessidade de desligamento de equipamentos, estão prorrogados os prazos de entrega da Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA), da Escrituração Fiscal Digital (EFD), da Guia Nacional de Informação e Apuração do ICMS por Substituição Tributária (GIA-ST) e da Declaração de Substituição Tributária, Diferencial de Alíquota e Antecipação (DeSTDA). Essa medida vale para todos os municípios do RS.
– GIA: prorrogada até 15/06/24 a entrega das GIA com vencimento no período de 24/04/24 a 10/06/24.
– EFD: prorrogada até 15/06/24 a entrega dos arquivos da EFD de fatos geradores ocorridos em abril de 2024.
– GIA-ST: prorrogada até 10/06/24 a entrega da GIA-ST referente a operações realizadas em abril de 2024.
– DeSTDA: prorrogada até 28/06/24 a entrega da DeSTDA de fatos geradores de abril de 2024
INSTRUÇÃO NORMATIVA RE Nº 036/24
Prorroga prazos de entrega da GIA e de arquivos da EFD.
DESPACHO Nº 21, DE 7 DE MAIO DE 2024
Dispensa a emissão de documento fiscal na operação e na prestação de serviço de transporte relativa à remessa de mercadorias doadas para assistência a vítimas de calamidade pública.
Amplia o prazo de pagamento de débitos de ICMS devido por estabelecimento localizado nos municípios em estado de calamidade pública ou em situação de emergência, listados no Decreto nº 57600/2024, nas condições que especifica.
Ativo imobilizado e Estorno de estoque
Há isenção do ICMS nas compras de mercadorias destinadas ao ativo imobilizado, composto por bens duráveis e necessários às operações das empresas – como máquinas, equipamentos e veículos, usados no processo produtivo ou na prestação de serviços. A medida vale também para partes, peças e acessórios e vige de 14 de maio até 31 de dezembro de 2024. Empresas atingidas estão dispensadas da exigência de estorno dos créditos de ICMS de estoques de mercadorias perdidos. A medide vige de 14 de maio até 31 de dezembro de 2024. O estabelecimento beneficiário deverá declarar que foi atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas e manter a comprovação à disposição da Receita Estadual pelo período decadencial.
Trata da emissão da Nota Fiscal de Entrada nas aquisições de produtores rurais.
PORTO ALEGRE
O Município de Porto Alegre concedeu uma prorrogação de prazo para o vencimento tributos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Taxa de Coleta de Lixo (TCL) e Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – Trabalho Pessoal (ISS-TP, que é devido pelos autônomos), além de suspender ações de cobrança administrativa e, em alguns casos, a judicial. Estas e outras medidas serão publicadas no Diário Oficial de Porto Alegre.
– Prorrogação de vencimentos de tributos: o vencimento do ISS de autônomos (ISS-TP), assim como do IPTU e TCL referentes ao mês de maio, será prorrogado para agosto, oferecendo um período adicional para os contribuintes organizarem suas finanças.
– Suspensão das ações de negativação e de protesto: não serão enviados registros de inadimplência aos órgãos de proteção ao crédito, e não haverá realização de protesto extrajudicial para os contribuintes que não realizarem pagamento de tributos em maio.
– Suspensão de ações de cobranças administrativas: também estão suspensas as demais ações de cobrança administrativa e de encaminhamento de dívidas para execução fiscal, salvo risco de prescrição, até 31 de maio de 2024.
– Suspensão de prazos para reclamações e recursos na Fazenda: os prazos para reclamações e recursos na Fazenda serão suspensos a partir de 30 de abril até 31 de maio de 2024.
– Prorrogação do prazo de validade da Certidão Negativa de Débitos: a validade das certidões negativas de débitos relativos aos tributos municipais serão prorrogadas. Certidões válidas em 2 de maio de 2024 terão sua validade estendida por 60 dias, e novas certidões terão sua validade temporariamente alterada para 90 dias a partir da data de emissão.
– Priorização de atendimento de processos de restituições: para agilizar o suporte aos contribuintes, os processos de restituições serão priorizados pela prefeitura.
– Suspensão de intimações para comparecimento presencial: até 31 de maio de 2024, estão suspensas as intimações para comparecimento presencial, em consonância com as medidas de segurança definidas pelo município.
MEDIDAS AINDA NÃO IMPLEMENTADAS
De um modo geral, as medidas anunciadas concedem moratória dos créditos tributários que tecnicamente é uma suspensão da exigibilidade do crédito tributário (art. 151, I, Código Tributário Nacional), o que significa que o tributo hoje prorrogado será pago em algum momento.
No entanto, é fundamental que seja elaborada medida legislativa para que seja concedida a remissão de tributos que, por sua natureza, é a extinção do crédito (art. 156, IX, Código Tributário Nacional). Como é necessário que seja concedida por meio de lei, é imprescindível que os Poderes Executivos encaminhem os projetos de lei para que a medida seja apreciada e aprovada nos respectivos órgãos legislativos.
Por fim, propõe-se a edição de Programas de Transação Tributária específica para contribuintes atingidos pelas enchentes contemplando a realidade específica que os gaúchos estão vivendo. Os editais vigentes no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional não levam em consideração a absoluta perda da capacidade contributiva do cidadão rio-grandense.