Visando amenizar os nefastos efeitos da pandemia sobre segmentos fortemente atingidos pelas duras medidas de distanciamento social, em 3 de maio de 2021 foi publicada a Lei 14.148 criando o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE), instituindo um conjunto de medidas com o objetivo de apoiar e recuperar os contribuintes do setor, sendo a medida mais importante a concessão de alíquota zero, durante o prazo de cinco anos, aplicável aos tributos federais (IRPJ/CSLL/PIS/Cofins).
Por Éderson Porto e Artur Hauser Schmitz
Não é demasiado referir que a relação tributária deve repousar em bases sólidas e de confiança mútua. O Estado, na condição de credor que possui a prerrogativa de criar e “impor” o seu crédito até mesmo contra a vontade do contribuinte, deve balizar seu comportamento pela legalidade tributária e sobretudo observando a boa-fé e proteção da confiança, princípios que estão fundados na moralidade administrativa inserida no artigo 37 da Constituição. Não é por acaso que os sistemas tributários das democracias ocidentais promovem, quase que unanimemente, o respeito à colheita do consentimento popular por meio da edição de lei (artigo 150, I da Constituição) e a vedação de surpresa (art. 150, III da Constituição).
Em matéria de relação jurídica tributária as mudanças abruptas são exceções devidamente previstas na Constituição e no Código Tributário Nacional, sendo vedada qualquer interpretação que menoscabe a tutela assegurada ao contribuinte. Quando se fala em revogação de benefício ou tratamento especial, a lógica segue rigorosamente a mesma cartilha.
Essa explicação é necessária para que o leitor compreenda o nível da agressão aos direitos fundamentais acima elencados com a edição da Medida Provisória n° 1.202 de 2023. No apagar das luzes do ano passado, o Governo Federal publicou ato normativo que passou a tolher direitos dos contribuintes em três matérias distintas: (a) desoneração da folha; (b) compensação de tributos e (c) PERSE. Este último é o tema deste texto.
A pandemia trouxe graves danos à saúde da população e notadamente o estrago nas economias ao redor do mundo. O Brasil estava buscando se recuperar de uma grave recessão acabou tragado para o fundo do poço pelos efeitos das medidas de distanciamento social. Por óbvio que todos sofreram e talvez um dos setores mais impactados foi o setor de turismo, eventos, bares e restaurantes. Com o propósito de socorrer e sensível ao abalo experimentado pelo setor, o Congresso Nacional aprovou, ainda em 2021, o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) instituído pela Lei nº 14.148/2021, publicada em 04 de maio de 2021.
Este programa visa diminuir o impacto da carga tributária naqueles negócios que mais sofreram com as o cenário pandêmico, muitos dos quais tiveram de fechar as portas, infelizmente. O PERSE reduz a 0%, durante o prazo de 60 meses, as alíquotas de PIS, COFINS, CSLL e IRPJ dos contribuintes contemplados pela lei instituidora, além de prever a renegociação de dívidas tributárias e não-tributárias, cujos descontos podem ultrapassar mais de 60% do valor total destes passivos.
Foi uma medida ousada e inédita. Os contribuintes estavam eufóricos porque nunca haviam recebido tamanha consideração pelas dificuldades que haviam experimentado. No entanto, a alegria durou pouco.
O então Ministério da Economia emitiu a Portaria ME nº 7.163/2021, objetivando regulamentar a matéria. Todavia, o §2.º, do art. 1º, do texto infralegal determinava que para usufruir do PERSE a empresa deveria estar cadastrada no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos – CADASTUR – até a data de publicação da Lei nº 14.148/2021.
Como a exigência não constava da lei instituidora, a Associação Brasileira de Eventos (Abrafesta) obteve uma decisão liminar favorável proferida pela desembargadora Mônica Nobre, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) com fundamento na violação da legalidade (TRF 3ª Região, Processo n° 5003946-64.2023.4.03.0000). As demandas foram sendo ajuizada até que o Governo decide “legalizar” a exigência. Em 2022 foi editada a Medida Provisória n° 1.147 que veio a ser aprovada e convertida na Lei n° 14.592/2023. Em síntese, as modificações impunham restrições ao regime anteriormente concedido e, no ponto, passava a impor o cadastro prévio no Cadastur.
A discussão se encontra no Supremo Tribunal Federal no âmbito do Supremo Tribunal Federal veiculada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 7.544 ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), onde será examinada a arguição de violação à isonomia entre contribuintes do setor de eventos submetidos aos mesmos efeitos da pandemia, porém alguns com cadastro e outros não. Parece inarredável o reconhecimento de discriminação inconstitucional que não possui relação de pertinência entre o critério de discriminação e a finalidade que se almeja promover com o tratamento especial conferido pela lei. Afigura-se razoável selecionar CNAES, identificar setores atingidos, porém exigir ex post uma condição para habilitação na condição de contribuinte afetado pela pandemia é evidentemente inconstitucional.
Muitos contribuintes impetraram Mandados de Segurança visando o reconhecimento de aderir ao PERSE mesmo não obtendo o cadastro no CADASTUR ao tempo da publicação da já referida lei.
No entanto, alguns tribunais do país vinham negando tal direito, conforme consta no acórdão do Apelação Cível Nº 5011749-14.2023.4.04.7100 julgada pela Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4):
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. PROGRAMA ESPECIAL DE RETOMADA DO SETOR DE EVENTOS – PERSE. LEI 14.148/2021. PRESTADORES DE SERVIÇOS TURÍSTICOS. NECESSIDADE DE PRÉVIA INSCRIÇÃO NO CADASTUR. É legítima a exigência de prévia inscrição no Cadastur para que os estabelecimentos prestadores de serviços turísticos possam usufruir do benefício fiscal instituído pela Lei nº 14.148/2021 (PERSE). Precedentes desta Turma. (TRF4, AC 5011749-14.2023.4.04.7100, SEGUNDA TURMA, Relator EDUARDO VANDRÉ OLIVEIRA LEMA GARCIA, juntado aos autos em 24/11/2023)
Há decisões que consideram ilegal esta exigência, conforme consta na decisão da Apelação Cível N. 08083548020224058100 do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5):
TRIBUTÁRIO. PROGRAMA DE RETOMADA DO SETOR DE EVENTOS – PERSE. LEI 14.148/2021. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA INSCRIÇÃO NO CADASTUR. PORTARIA ME 7.163/2021. EXTRAPOLAÇÃO DO PODER REGULAMENTAR. (…) 5. Entre os benefícios estabelecidos pelo programa há redução a zero por cento pelo prazo de sessenta meses das alíquotas de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS devidas pelas pessoas jurídicas que exerciam diretamente ou indiretamente as atividades econômicas que se enquadram na definição do setor de eventos.6. O Ministério da Economia, através da Portaria ME Nº 7.163, de 21 de junho de 2021, de acordo com o § 2º do art. 2º da Lei nº 14.148/2021, com o objetivo de especificar as atividades a serem beneficiadas, estabeleceu como condição para o enquadramento das pessoas jurídicas como prestadoras de serviços turísticos a inscrição regular no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos – CADASTUR, na data da publicação da Lei nº 14.148/2021. 7. Esta Turma em decisão recente vem entendendo que a limitação imposta pelo § 2.º do art. 1º da Portaria ME 7.163, de 21 de junho de 2021 ultrapassa o poder regulamentar, tendo em vista que cria limites não previstos pela Lei, no que fere o princípio constitucional da legalidade (inciso II do art. 5º da Carta Magna) e também o 6º do art. 1560 da mesma Carta, no concernente à concessão de benefícios e incentivos fiscais.8. (…) 9. Demais disso, contraria também o art. 100, do Código Tributário Nacional, segundo o qual os atos normativos expedidos pelas Autoridades administrativas são normas complementares das leis, ou seja, são atos normativos secundários, atribuídos à Administração, a fim de regulamentar, sem alterar, os atos normativos primários, buscando sempre sua fiel execução.10. Apelação provida. (PROCESSO: 08083548020224058100, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO (CONVOCADO), 1ª TURMA, JULGAMENTO: 26/10/2023).
Instaurada a divergência entre as Cortes Regionais, resta aos contribuintes formularem seus pleitos de ingresse no regime sob pena de perderem o prazo fixada pelo benefício.
No entanto, a saga dos contribuintes parece não ter fim. Como noticiado no início do texto, o Governo Federal editou nova Medida Provisória que antecipa o fim do PERSE. Para uma Administração que adotou o slogan de “União e Reconstrução”, a medida parece sinalizar em direção oposta. Desconsidera o quanto sofreram os contribuintes que foram contemplados com o programa e simplesmente retira-lhes a ajuda que visava impulsionar o segmento. Ocorre que a revogação de isenção, segundo prescreve o artigo 178 do Código Tributário Nacional, não pode ter efeito retroativo quando a isenção foi concedida por prazo certo e em caráter oneroso. O Supremo Tribunal Federal consolidou a orientação com a edição do enunciado da Súmula 544 que estabelece: “Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.
Não há dúvida que a redução de alíquotas à zero equivale a isenção (STF: REs 350.446, 353.44, 370.680). O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de examinar controvérsia semelhante quando considerou ilegal a revogação prematura de alíquota zero aplicável ao setor varejista (REsp 1.725.452), situação que guarda similitude com o caso do PERSE. Na Corte Superior também se colhe precedente que reconhece que a onerosidade não se resume ao desembolso financeiro, podendo atender ao critério a manutenção de determinado número de empregados, ou aumentar atividade empresarial, conforme se observar nos precedentes: REsp 1.845.082 e 627.998.
Como se pode ver, a vida do contribuinte atingido pela pandemia nunca foi fácil e quando imaginava ter seu sofrimento mitigado com o alívio tributário, viu-se enredado em litígio numa sequência de litígios sem qualquer sentido. De toda sorte a mensagem do texto deve ser de otimismo com os precedentes invocados e que encorajam o contribuinte a ter esperança em dias melhores.